Tessitura 5

Tessitura 5: Música Meninos e Meninas e Crônica Pertencer

Na Atividade 2.3, foi proposto que as/os participantes ouvissem a música Meninos e Meninas, composta por Renato Russo, Dado Villa-lobos, Marcelo Bonfá e interpretada pela banda Legião Urbana, e refletissem sobre como a letra aborda os papéis sociais de meninos/homens e meninas/mulheres. Com base nisso, aconteceu uma discussão, por meio da ferramenta de bate-papo do Facebook, em que as/os participantes deveriam trazer outras referências, que dialogassem com a música. Destaco, desta atividade, o comentário de Amarelo:

Bom, acho que eu nunca tinha parado para realmente ouvir a música… E foi bem pesada… Quando eu ouvia em casa eu era criança e ficava lá brincando com minhas bonecas escondido das pessoas, não era a pessoa que “estou” hoje, eu prefiro usar o verbo estar ao verbo ser pois estamos sempre em constantes mutações… O trecho que mais me tocou foi este:
“Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente
Estou cansado de bater e ninguém abrir
Você me deixou sentindo tanto frio
Não sei mais o que dizer”
Acho que este trecho define minhas maiores angústias, que é a de não me encaixar entre os padrões de gêneros que temos, e este trecho me leva pra uma trama de dúvidas sobre a minha esfera pessoal com a esfera social, das coisas que tenho que fazer para ser “aceito” ou pelo menos respeitado nessa sociedade que oprime e machuca, percebo que fico preso nisso quando é mais fácil para eu responder: “o que os outros esperam de mim?” sem nem ao menos saber o que eu espero de mim … Falando em angústia tem um texto da maravilhosa Clarice Lispector chamado “Pertencer” que ela fala sobre a angústia de não pertencer a nada, de se sentir avulso, de graça.
Posso postar aqui também, se quiserem  😉   (Amarelo)

Em seguida, Amarelo postou a crônica, de Clarice Lispector, Pertencer, publicada originalmente no Jornal do Brasil, no dia 15 de junho de 1968, e uma imagem[1] de um homem com os olhos e a boca cobertos por braços carregando as palavras: Celebrity (Celebridade), Consume (Consumo), Sensationalism (Sensacionalismo), Scandal (Escândalo), Sex tapes (Fitas de sexo)[2]:

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não pertencer” começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho. (LISPECTOR, 1999, p. 110).

Figura 41 – Intermultimidialidade realizada na Atividade 2.3

Apesar de ter recebido uma indagação minha, Amarelo não explicou em detalhes porque realizou as aproximações entre a música, a crônica e a imagem, a não ser por ter destacado um trecho da música (“Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre / Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente / Estou cansado de bater e ninguém abrir / Você me deixou sentindo tanto frio / Não sei mais o que dizer”), dizendo: “Acho que este trecho define minhas maiores angústias, que é a de não me encaixar entre os padrões de gêneros que temos, e este trecho me leva pra uma trama de dúvidas sobre a minha esfera pessoal com a esfera social, das coisas que tenho que fazer para ser “aceito” ou pelo menos respeitado nessa sociedade que oprime e machuca”.

Além disso, Amarelo disse que se lembrou da crônica, porque “ela fala sobre a angústia de não pertencer a nada, de se sentir avulso, de graça”, em uma clara referência ao que diz o eu lírico do texto: “Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça” (LISPECTOR, 1999, p. 110). Por sua vez, a imagem representando um homem com os olhos e a boca também remetem à angústia, sentido que, para ser depreendido, requer que seja acessada a habilidade de leitura de textos verbais e não verbais, como preceituam as concepções de Roxane Rojo (2012) sobre os multiletramentos. Nesse ínterim, propor uma imagem que possibilitou a ampliação das discussões demonstrou, ainda, uma marcação de postura, conforme indicam David Barton e Carmen Lee (2015).

A partir desses recortes, foi possível perceber que Amarelo estabeleceu uma relação de intermultimidialidade entre a letra da música, a crônica e a imagem. Nesse caso, quando citou a música e remeteu à crônica, Amarelo estabeleceu intertextualidades temática e explícita. Já, a aproximação entre os textos e a imagem se assemelhou ao que acontece na intertextualidade temática. Nesse caso, Amarelo fez uma clara demonstração de posicionamento, sobretudo porque explicou o motivo de suas escolhas e das relações que estabeleceu entre os artefatos multimídias.

Ao construir essa relação de intermultimidialidade, Amarelo conseguiu atingir o objetivo proposto para o curso, o qual dialoga com o que indica Cláudia Ribeiro (2010, p. 10):

Os processos do ensinar e do aprender; do aprender e do ensinar nas temáticas de gênero e sexualidade são desafiadores, pois tangenciam, transversalizam, estão no centro e nas margens e, portanto, são complexos, paradoxais, enigmáticos, polêmicos, muitas vezes proibidos, contraditórios, prazerosos.

Justamente por permitirem tantos diálogos, os processos de ensino-aprendizagem são tão complexos, mas, ao mesmo tempo, tão enriquecedores e especiais. E as muitas discussões que podem ser suscitadas referem-se a diversos aspectos. No caso dessa postagem, poderia ser discutida, por exemplo, a sensação de não pertencimento demonstrada por Amarelo, a qual advém, provavelmente, do fato de que, como afirma Roney Polato de Castro (2012, p. 148),

Em nossa sociedade, o “masculino” e o “heterossexual” têm sido considerados padrões, ou seja, eles têm caráter de norma, a partir da qual se constroem como referência para produzir a condição de marginais e inferiores daqueles que diferem desses padrões: mulheres, homossexuais, bissexuais, travesti, transexuais, entre outros.

A afirmação do autor indica que as temáticas relações de gêneros e sexualidades precisam ser discutidas, conforme o que foi proposto pelo Curso Corpo, saúde, sexualidades, a fim de suscitar debates como: o estabelecimento de padrões não deveria, então, ser questionado, para que as pessoas marginalizadas não acabassem como na figura: silenciadas?

 

[1] Imagem disponível em: http://periodismeiconsciencia.org/wp-content/uploads/2014/03/censura-3.jpg. Acesso em: 11 mar. 2017.

[2] Tradução minha.

Tessitura 6: Série Quem sou eu? e livro Alice no País das Maravilhas ->