Relações de gêneros e sexualidades na formação docente

Assim como as tramas que compõem um tecido, diluídas estão pela sociedade as relações de poder, que constroem saberes e instituem verdades, conforme indica Michel Foucault (2014), especialmente quando o assunto é sexo ou qualquer temática relacionada a isso. Por conseguinte, pesquisar relações de gêneros e sexualidades torna-se um desafio, sobremaneira se o foco estiver voltado para a formação de alunos e alunas, em qualquer nível escolar.

O recorte desta pesquisa é o ensino superior, mais especificamente a formação inicial docente, nas licenciaturas, a qual se refletirá em todos os âmbitos da educação formal, tendo em vista que o/a professor/a será um/a multiplicador/a das ideias que aqui são discutidas. Com base nos estudos de Kelly da Silva (2015), tentou-se compreender como as sexualidades estão presentes nos currículos dos cursos de formação docente. A autora faz um levantamento sobre como as relações de gêneros e sexualidades aparecem nos currículos dos cursos de pedagogia de três universidades mineiras. Ela chegou à conclusão de que a temática, quando integra as matrizes curriculares, só pontua disciplinas de outra natureza ou, no máximo, é uma disciplina eletiva, oferecida apenas durante alguns períodos, asseverando que:

Pensar a sexualidade como um saber que perpassa diferentes campos de conhecimento propõe o rompimento com as barreiras entre as disciplinas e, ainda, uma abordagem sobre o tema em todos os espaços, pois, por mais que tentemos fugir à sexualidade, sua representação estará presente nos organizando, chamando-nos à regra dizendo-nos como agir. (SILVA, 2015, p. 109).

Nessa perspectiva, já que os temas relações de gêneros e sexualidades fazem parte do cotidiano, nas mais diversas esferas sociais, eles poderiam ser vistos com mais naturalidade e receberem mais atenção. E isso inclui serem levados para as universidades, integrando a formação docente, para que licenciandas e licenciandos tenham condições de aprender a integrá-los ao seu futuro planejamento de aulas.

No caso desta pesquisa, que se utilizou de um curso de extensão voltado para licenciandas e licenciandos da Universidade Federal de Lavras (UFLA), no sul do estado de Minas Gerais, Brasil, pode-se notar semelhanças com a realidade apresentada pela pesquisadora supracitada. São oito licenciaturas oferecidas pela instituição, em cujas matrizes[1] buscaram-se os termos gênero e sexualidade, levando à constatação de que: no curso de Física, não havia menção ao tema; já, para os cursos de Educação Física, Filosofia, Letras e Química, aparecia como parte de uma disciplina eletiva (Sociologia da EducaçãoANEXO A). Para os cursos de Ciências Biológicas e Matemática, era oferecida a disciplina eletiva Relações de Gênero no Mundo do Trabalho (ANEXO B). E, diferentemente do que foi constatado por Kelly da Silva (2015), na UFLA, o curso de Pedagogia tem a disciplina obrigatória Educação, Gênero e Sexualidades (ANEXO C) e a eletiva Sexualidades e Infâncias (ANEXO D).

A ementa da disciplina Educação, Gênero e Sexualidades prevê que serão abordados o seguintes temas: “Sexualidade como dispositivo histórico. Gênero como categoria analítica e como constituição identitária. Educação para as sexualidades. Gênero e educação: relações e vivências na prática pedagógica” (BRASIL, 2016, p. 1). Já a disciplina Sexualidades e Infâncias aborda uma análise de temas relacionados à sexualidade humana, tendo em vista as linguagens e o processo de construção do corpo sexuado, a partir de uma perspectiva pós-crítica (BRASIL, s/d b, p. 1).

A presença desses temas na matriz curricular da graduação em Pedagogia, a qual foi criada recentemente, no ano de 2015, constitui-se uma vanguarda, ainda mais se comparada com a ausência do tema em cursos mais antigos, como os relatados pela pesquisadora supracitada, a qual defende que:

Acrescentar a discussão de sexualidade nos cursos de formação de professores/as […] é desafiante porque nos convida a problematizar como se refletem nestes cursos, os saberes ali presentes, especialmente no que se refere às discussões sobre a sexualidade e à observação dos discursos produzidos acerca das novas representações de gênero existentes. Isso é para pensarmos como estas questões falam da negociação de identidades e como as diferenças são produzidas e perpassadas por relações de poder. (SILVA, 2015, p. 159).

Em conformidade com o pensamento acima exposto, aceno para a necessidade de mudança de paradigmas, como o que se apresentou na UFLA, o que adveio de muita luta e enfrentou muita resistência institucional. E sei disso porque uma das responsáveis por essa inovação é a professora Cláudia Ribeiro, que se utiliza de várias estratégias para conseguir, em meio a negociações e brechas, problematizar as questões ligadas a relações de gêneros e sexualidades.

Nesse sentido, oferecer um curso de extensão como o Corpo, saúde, sexualidades, voltado para discussões sobre tal temática, é também uma forma de resistência e auxilia tanto o aprofundamento do que já é visto em alguns cursos quanto a suprir as lacunas de outros. Um indício dessa necessidade está relacionado ao perfil dos/as participantes e os seus cursos, já que das pessoas que se inscreveram: 34 eram de Letras, 5 de Pedagogia, 4 de Educação Física, 2 de Matemática e 2 de Química; além de 1 da Agronomia e 2 do Direito. Ou seja, diante da quantidade de discentes da UFLA, pode-se notar que há uma demanda maior pela formação nesse assunto em cursos que habilitam futuros/as professores/as.

Essas/es licenciandas/os estão em processo formativo e, infiro, muitos pretendem se tornar professoras/es e chegarem à escola, onde se depararão com uma realidade que necessita das discussões sobre gêneros e sexualidades. E, sendo a escola um microcosmo social, ela reproduz os paradigmas vigentes na sociedade em relação a várias temáticas, inclusive quanto às representações de gêneros e aos tabus impostos à discussão sobre sexualidades, conforme defende Guacira Lopes Louro (2012): “É indispensável que reconheçamos que a escola não apenas reproduz ou reflete as concepções de gênero e sexualidade que circulam na sociedade, mas que ela própria as produz” (p. 80-81).

Contudo, se a escola contribui para delinear as noções sobre gêneros e sexualidades – e, por conseguinte, as discriminações – difundidas em sociedade, não poderia ela, então, desempenhar o papel contrário? Isso porque a escola também contribui para o desenvolvimento das percepções de como a criança interpreta e assimila a sua sexualidade e se relaciona socialmente com as outras pessoas. Sob a ótica da autora supracitada, tem-se que:

Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe – são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo, seus produtores. Todas essas dimensões precisam, pois, ser colocadas em questão. É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e os sentidos que nossos/as alunos/as dão ao que aprendem. (LOURO, 2012, p. 64).

Em conformidade com os prognósticos dessa pesquisadora, defende-se que é necessário questionar a forma como a educação é feita no Brasil, especialmente o modo como as temáticas relações de gêneros e sexualidades, muitas vezes, são deixadas de lado ou evitadas, não apenas na escola, mas na sociedade de modo geral. E, conforme suscita Michel Foucault (2014), “não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos” (p. 31). Ao relegar esses temas ao silêncio, a escola acaba por cumprir papel oposto, ora criando, ora reforçando situações de opressão e discriminação.

Contudo, entendo que esses temas não podem ser evitados, pois se entrecruzam o tempo inteiro, necessitando, portanto, de análise e reflexão, sobretudo quanto às formas como são tratados em sociedade. Tendo em vista que toda pessoa nasce sem gênero, é a sociedade que toma para si o papel de determinar, a partir do órgão genital da criança, sob a ótica do binarismo, se ela será menino ou menina e a forma como deverá se (com)portar. Então, se a criança nasce com vagina, a sociedade diz que ela terá que usar rosa, ser delicada, frágil, sensível. Por sua vez, a criança que nasce com um pênis terá que gostar de azul, ser forte, destemida, ativa, segundo as imposições sociais. Assim, o gênero é determinado socialmente, em função do sexo biológico e a sociedade faz com que isso se perpetue, seja por meio de ações, seja por meio da linguagem:

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição das distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente – tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como por que ela nos parece, quase sempre, muito “natural”. (…) No entanto, a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças. (LOURO, 2012, p. 65, grifos da autora).

Entende-se, como a autora, que, seja a linguagem verbal, seja a não verbal, seja a corporal ou qualquer outra, as pré-determinações e os pré-conceitos acabam diluídos na forma de pensar, de agir, de falar. Então, faz-se importante cuidar dessa linguagem[2], refletir sobre essa linguagem, em todos os locais da sociedade, não apenas com jovens e adultos, mas sobremaneira com crianças, as quais estão iniciando o seu processo de relacionamento social, aprendendo a conhecer o seu próprio corpo e os corpos das outras pessoas. O que se quer evidenciar, portanto, é que mais do que se tratar de uma discussão acadêmica, problematizar essa temática torna-se um compromisso com uma formação humana mais crítica e apurada. Mais do que teoria, afirmo ser preciso assumir uma prática que implique o cuidar da criança, para que a ela aprenda a cuidar de si, entenda a necessidade de ser cuidada e, por consequência, a cuidar e ter respeito com as pessoas que a rodeiam (RIBEIRO, 1996). O comprometimento com a formação da criança propicia o desenvolvimento de adultos melhores, que buscarão uma sociedade mais justa e igualitária.

E qual é o espaço da sociedade onde a criança passa mais tempo e aprende? Onde ela convive mais em sociedade? É na escola. Esta, contemporaneamente, muitas vezes, chega a cumprir o papel da família, contribuindo não apenas para a formação intelectual, mas também para a formação de caráter dos seres humanos. Porém, muitas vezes, ao invés de promover diálogo, reflexão e modificação de padrões sociais, a escola acaba reforçando preconceitos na determinação dos gêneros e, aos auspícios de Guacira Lopes Louro (2000),

Apesar dos esforços ou da pretensão de alguns, a sexualidade de meninos e de meninas, de jovens e de adultos não consegue ser mantida fora da escola, destinada apenas ao uso externo.
Preocupada em disciplinar e normalizar os indivíduos, a escola, ao longo da história, ao mesmo tempo que negou o seu interesse na sexualidade, dela se ocupou (p. 47).

O espaço escolar, enquanto espaço formativo, contribui, também, para o desenvolvimento de identidades de gêneros e sexualidades, bem como, algumas vezes, organiza e segrega por meio disso. A escola deixa, então, de fazer a diferença na sociedade, para se tornar mais uma instituição a simplesmente reproduzir opressões sociais a partir das relações de poder socialmente estabelecidas, com bem propalou Michel Foucault (2014, p. 157): “pode-se compreender a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política”. E ele ainda continua, pontuando os dois eixos em torno dos quais, segundo ele, se desenvolveu a tecnologia política da vida: a disciplina dos corpos e a regularização das populações. Funções essas desempenhadas pelas várias instituições sociais, entre as quais, o governo, a religião, a medicina e a escola. Assim, esse autor discute que a sociedade deixa de prender o ser humano fisicamente e passa a prendê-lo em uma moralidade construída, a fim de saber como se apresenta a sexualidade do outro, porque isso vai tornar o ser moralmente frágil e facilmente manipulável (FOUCAULT, 2014).

Tal domínio é exercido por meio de estratégias, entre as quais está a “pedagogização do sexo da criança” (FOUCAULT, 2014, p. 113), ao entender-se essa sexualidade infantil como algo natural e, ao mesmo tempo, proibido e que, por estar no limiar da vida, deve ser acompanhado nos âmbitos familiar, médico e escolar.

Entretanto, defendo que a escola, enquanto espaço formativo, em vez de perpetuar essas relações de dominação e controle, deveria, exatamente, questioná-las, interrogar como os discursos, de modo geral, se configuram, e, nesse contexto, discutir, também, a “ideologia de gênero”. A discussão em torno desse termo advém de contendas políticas recentes relacionadas à inclusão das discussões sobre relações de gêneros e sexualidades no Plano Nacional da Educação (PNE). Na tentativa de retirar esses temas do PNE, um grupo conservador de políticos, juntamente com alguns setores da sociedade, passou a utilizar esse termo, o qual carrega um sentido incorreto de que a escola determinaria a orientação sexual das crianças. Na verdade, o que se propõe – e o que assumo em minhas pesquisas – é a ideia de identidade de gênero (CASTRO, 2012), que pressupõe o respeito às diversidades e possibilita discussões como: por que a necessidade do binarismo rosa versus azul, fraco versus forte? Por que se deve ser mulher ou homem? Onde fica, então, a pessoa transgênera nessa dualidade? E todas as outras cores e nuances de tom que existem no que se refere às sexualidades?

A discussão se amplia quando se pensa, por exemplo, em uma menina ou um menino que não se identifica com todas as características que a sociedade estabeleceu para o seu gênero – o que é, muitas vezes, ensinado, imposto e reforçado por uma escola que controla corpos, dentro da sala, cercados por carteiras e paredes. Então, se ela/ele entra em conflito entre o que sente e o que a sociedade determina, a escola, em vez de entender, promover reflexão e auxiliar nesse processo de descoberta, pune, porque, nesse sentido, é lugar de cerceamento, de repressão, reproduzindo o que a família, a religião e a sociedade fazem nas construções de saberes e estabelecimento de verdades marcados por relações de poder:

O poder funciona como um mecanismo de apelação, atrai, extrai essas estranhezas pelas quais se desvela. O prazer se difunde através do poder cerceador e este fixa o prazer que acaba de desvendar. O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global e aparente dizer não a todas as sexualidades errantes ou improdutivas, mas, na realidade, funciona o como mecanismo de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro lado, prazer que se abraça por ter de escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. (FOUCAULT, 2014, p. 50, grifo do autor).

E sustentando-se nessas premissas, esta pesquisa compreende que os imbricamentos entre poderes e prazeres permeiam a sociedade e, de modo especial, a escola e quem a ocupa: gestores/as, professores/as, alunos/as que, de modo consciente ou mesmo sem perceber, ao mesmo tempo em que vigiam, analisam, acompanham, discriminam, cerceiam, agridem. E nesse contexto, as/os discriminadas/os, cerceadas/os, agredidas/os vão resistindo, encontrando brechas para (sobre)viver.

Em consonância à perspectiva foucaultiana, Kelly da Silva (2015, p. 143) defende que “os saberes e poderes e a produção do discurso são, ao mesmo tempo selecionados, controlados, preparados e remanejados por procedimentos que têm por objetivo controlar os ‘acontecimentos’ que podem se desdobrar a partir daí”. O que significa dizer que a escola constrói e sustenta discursos que reforçam preconceitos e discriminações, bem como é uma das responsáveis por demarcar a separação e a distinção de gêneros:

Nesse contexto, o conceito de gênero passa a englobar todas as formas de construção social, cultural e linguística implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade. O conceito de gênero privilegia, exatamente, o exame dos processos de construção dessas distinções – biológicas, comportamentais ou psíquicas – percebidas entre homens e mulheres. (MEYER, 2016, p. 18).

O que Dagmar Estermann Meyer (2016) aponta é como a bipolaridade feminino versus masculino se apresenta na sociedade e, por conseguinte, na escola. Como essa forma de ver dicotômica, algumas vezes, torna-se uma lente aos olhares, ela acaba segmentando três conceitos que, na verdade, estão inter-relacionados, já que todo ser humano carrega em seu corpo o seu sexo e sua sexualidade, que podem se apresentar das mais diversas formas, mas são próprios de cada pessoa.

Defendo, então, que a formação docente precisa considerar esse contexto, pois professoras/es que estão na escola não deveriam ser reprodutores dessa mentalidade cerceadora. Em vez disso, poderiam ter mais senso crítico para pensar coletivamente com as/os alunas/os. E isso começa antes, na graduação dos/as futuros/as professores/as: as licenciaturas. Dessa forma, é preciso atentar-se para a formação inicial docente, a fim de dar às/aos professoras/es as condições de tratarem dessa temática em sala de aula.

Essa perspectiva vai ao encontro do que indica a legislação brasileira afeta à educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que tratam de temas como a Orientação Sexual, os quais, por sua vez, já necessitam de atualização, tendo em vista os constantes novos estudos na área. Ou ainda documentos jurídicos mais recentes, que abordam o assunto de modo mais abrangente, como a Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012, que estabelece diretrizes nacionais para a educação em direitos humanos e prevê, em seu artigo 3º:

Art. 3º A Educação em Direitos Humanos, com a finalidade de promover a educação para a mudança e a transformação social, fundamenta-se nos seguintes princípios:
I – dignidade humana;
II – igualdade de direitos;
III – reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades;
IV – laicidade do Estado;
V – democracia na educação;
VI – transversalidade, vivência e globalidade; e
VII – sustentabilidade socioambiental.
(BRASIL, 2012, p. 1-2, grifos meus).

Depreende-se, com base nessa jurisprudência, a necessidade de que os/as professores/as estejam preparados/as para contribuir com uma educação que contemple os direitos humanos, em busca de valorização e respeito às pessoas. E isso precisa ser feito considerando, inclusive, que os direitos devem ser iguais para todos/as e as diferenças e as diversidades precisam ser reconhecidas e valorizadas. O que se quer dizer com isso é que temáticas como relações de gêneros e sexualidades precisam ser contempladas, seja por meio de uma disciplina ou de modo transversal, em diferentes projetos, a fim de atender a essas prerrogativas.

Nesse ínterim, Kelly da Silva (2015, p. 138) acredita que “pensar as construções de gênero e sexualidade no currículo permite a problematização, por parte dos/as docentes universitários/as das questões relativas a gênero e sexualidade em suas conexões com o currículo e com as técnicas de saber-poder”. Tais relações de saberes e poderes marcam os currículos, não apenas do ensino superior, mas de toda a educação básica. Logo, repensar um, implica repensar o outro.

Contudo, o momento político atual dificulta esse trabalho, tendo em vista as relações de gêneros e sexualidades serem considerados assuntos complexos e polêmicos e, portanto, evitados na escola. Haja vista a Reforma do Ensino Médio[3], aprovada em fevereiro de 2017, que, entre outros assuntos, prevê a não obrigatoriedade dos estudos e práticas de Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes nos três anos do Ensino Médio, mas apenas em um ano, a critério da escola. Esse acaba se tornando um fator que dificulta as possibilidades de se discutir sexualidades e ampliar os horizontes críticos de crianças e jovens para uma formação mais cidadã.

Essa reforma acaba reverberando no Ensino Superior, tendo em vista que o trabalho com as disciplinas suprimidas contribuiria, também, para despertar o interesse pelo ingresso em cursos como as licenciaturas, que, por sua vez, formaria professoras e professores que trabalhariam com tais conteúdos. Dessa forma, as possibilidades de discussões sobre relações de gêneros e sexualidades, em vez de ampliarem-se, acabam sendo minadas.

Além disso, é imprescindível que haja grupos de formação que trabalhem junto à escola, para auxiliarem na formação continuada dos docentes. Existe, por exemplo, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), um projeto nacional voltado para as licenciaturas, que reúne docentes em formação inicial e continuada, pois une professoras/es e alunas/os das licenciaturas das universidades e alunos/as e professores/as da escola, contribuindo para a formação de ambos os seguimentos: tanto quem está circunscrito à escola e não tem tempo para investir em formação continuada, quanto quem está na universidade, que pode ter contato com a prática escolar, favorecendo a pesquisa por parte dos/as professores/as universitários/as. Assim, há uma troca enriquecedora para todos/as.

No caso da UFLA, há vários grupos relacionados ao Pibid, entre os quais, destaca-se, devido ao mote deste trabalho, o Pibid Pedagogia – Gênero e sexualidade, que desenvolve atividades junto a duas escolas da rede pública, em Lavras, com o objetivo de problematizar questões relacionadas a esse tema e contribuir para a formação docente. Além disso, na UFLA são desenvolvidos projetos de extensão, como o Borbulhando Enfrentamentos às Violências Sexuais nas Infâncias no Sul de Minas Gerais (RIBEIRO; ALVARENGA, 2016), que procuram discutir essas temáticas, aproximando universidade, escola e sociedade.

Por isso, pondero ser necessário pensar em um currículo de formação docente que seja significativo para o trabalho que o/a professor/a desenvolverá na escola. O Curso Corpo, saúde, sexualidades exemplificou isso quando utilizou o Caderno escola sem homofobia[4], que foi desenvolvido como parte do programa Brasil sem homofobia (lançado em 2004). Esse material foi criado para dar ferramentas a educadoras/es que quisessem levar para sala de aula o trabalho com gêneros e sexualidades, de modo reflexivo e respaldado por estudos na área. Mas o seu lançamento não aconteceu, tamanha a pressão das bancadas conservadora e religiosa do Congresso, que alegavam estar-se tentando ensinar as crianças a serem homoafetivas[5]. Em 2011, então, o material, apelidado pejorativamente como kit gay, por correntes contrárias ao seu uso, acabou engavetado. E as possibilidades de uma escola mais crítica e diversa, diminuídas.

Três anos mais tarde, outro retrocesso, nesse mesmo viés, foi o impedimento de que as discussões sobre gêneros e sexualidades estivessem presentes no Plano Nacional de Educação (PNE)[6], bem como nos planos estaduais e municipais. E, mesmo a Constituição Federal e alguns dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário (por exemplo: a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino e a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) garantindo a igualdade de gêneros e a necessidade de que a discussão aconteça também na escola, os planos são omissos sobre isso. Tal polêmica foi movimentada pelas bancadas conservadoras das câmaras legislativas, apoiadas por alguns setores da sociedade, como os religiosos, que alegavam estar-se propagando a “ideologia de gênero”.

Esse também foi um assunto do curso de extensão, quando se discutiu a diferença entre ideologia e identidade de gênero. Como já dito anteriormente, enquanto a noção de ideologia carrega o sentido pejorativo de que as escolas “ensinariam as crianças a serem homossexuais”, segundo os conservadores citados, o conceito de identidade pressupõe respeitar cada pessoa como ela é e educar para a convivência com a diversidade.

Tal postura é corroborada pelas legislações afetas à educação, como os PCN que, apesar de antigos, ainda indicam caminhos a serem seguidos na educação, como, em seu Volume 10, tratando do tema Orientação Sexual:

Se a escola que se deseja deve ter uma visão integrada das experiências vividas pelos alunos, buscando desenvolver o prazer pelo conhecimento, é necessário que ela reconheça que desempenha um papel importante na educação para uma sexualidade ligada à vida, à saúde, ao prazer e ao bem-estar, que integra as diversas dimensões do ser humano envolvidas nesse aspecto. (BRASIL, 1997, p. 78)

Assim, considero que as relações de gêneros e sexualidades tornam-se, então, temas que precisam fazer parte do currículo escolar, como tema transversal, que perpasse todas as disciplinas. Todavia, o trabalho com essa temática, ao ser levado para a escola, precisa estar respaldado em diferentes referenciais teóricos, tendo em vista ser esse um campo rizomático, como dito anteriormente, e muitas serem as possibilidades para se tratar do tema. Procuro, então, com esta pesquisa, estabelecer um diálogo entre três áreas: sexualidades, linguística e tecnologias, de tal modo que a última forneça instrumentos que possibilitem o trabalho com a linguagem e a discussão sobre relações de gêneros e sexualidades.

Para tanto, proponho uma reconfiguração, a partir de uma mudança do seu contexto de uso, cunhando o termo artefatos multimídias[7], conceito que procura englobar um conjunto de objetos, sejam eles reais ou virtuais, analógicos ou digitais, que reúnem texto, som, imagem, entre outros, tratando de um determinado assunto.

 

[1] As matrizes curriculares podem ser consultadas no site do Sistema Integrado de Gestão (SIG) da UFLA. Disponível em: https://sig.ufla.br/modulos/publico/matrizes_curriculares/index.php. Acesso em: 11 mar. 2017.

[2] Justamente por esse motivo a minha escolha por identificar por nome completo as autoras e os autores lidos e utilizar a indicação de ambos os gêneros ao me referir às pessoas.

[3] BRASIL. Ministério da Educação. Novo Ensino Médio – Dúvidas. 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361. Acesso em: 12 mar. 2017.

[4] SOARES, Wellington. Conheça o “kit gay” vetado pelo governo federal em 2011. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-pelo-governo-federal-em-2011. Acesso em: 12 mar. 2017.

[5] Escolhi utilizar homoafetivo/a em vez de homossexual, tendo em vista o caráter semântico que a palavra carrega, de acordo com o que preconiza Tais Leal de Oliveira (2006): os termos homoafetivo e homoafetividade “abarcam a prática sexual e o afeto entre as pessoas, sem fazer quaisquer referências a doenças ou substâncias orgânicas ou psíquicas” (p. 22). A exceção para esse uso dar-se-á apenas em citações em que o/a autor/a utilizar outros termos, como homossexualidade, homoerotismo, homocorporalidade e palavras afins.

[6] BRASIL. Ministério da Educação. PNE em Movimento. 2014. Disponível em: http://pne.mec.gov.br/. Acesso em: 12 mar. 2017.

[7] Entendo aqui o ineditismo dos termos artefato multimídia e intermultimidialidade, quando aplicados à área de pesquisa desta dissertação. O que se comprova por buscas realizadas por meio do Google Acadêmico (Disponível em: www.scholar.google.com.br) e do banco de teses e dissertações da Capes (www.bancodeteses.capes.gov.br), que não retornaram outras pesquisas que utilizam esses termos da forma como utilizei.

Conceituando artefatos multimídias e intermultimidialidade ->